A trágica morte do cartunista Glauco e de seu filho Raoni, assassinados na noite da quinta-feira 11, reacendeu na mídia o debate em torno do uso da ayahuasca, bebida psicoativa de origem amazônica utilizada secularmente por diferentes etnias indígenas e a partir do início do século passado por vários grupos religiosos. Motivo: o assassino Carlos Eduardo Sundfeld Nunes frequentou a igreja do Santo Daime, Céu de Maria, em Osasco, na Grande São Paulo, que utiliza o chá em seus rituais e era dirigida pelo cartunista desde a década de 1990. Para especialistas e pesquisadores da substância, parte da imprensa tropeça em equívocos.
“Pessoas que não conhecem os efeitos deste chá e seus rituais imaginam se tratar de mais uma droga”, observa o médico-psiquiatra Wilson Gonzaga, integrante do grupo multidisciplinar do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), responsável pela resolução que regulamenta o uso da ayahuasca no Brasil.
Um ponto central a ser esclarecido, segundo Gonzaga, é que a criticada liberação do uso religioso da ayahuasca, em janeiro deste ano, é resultado de um processo de mais de duas décadas que atravessou diversos governos e foi objeto de estudo de importantes cientistas, nacionais e internacionais, nas áreas da psiquiatria, medicina e antropologia. “Para se chegar a esta aprovação foram necessários anos de pesquisas, é ingênuo dizer que o governo foi imprudente, políticos podem ser levianos, mas o Estado não é”, afirma o médico, que participou de todo o processo de legalização e regulamentação do uso da bebida amazônica.
Segundo o médico-psiquiatra Dartiu Xavier, professor da Unifesp e fundador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), não existe base científica para associar o consumo do daime a tendências homicidas. “A mídia tem sido tendenciosa, sobretudo neste aspecto.” Xavier reconhece, porém, a existência de casos contraindicados, como o uso concomitante do chá com antidepressivos e o consumo por afetados com psicose. “Pode ser o caso do assassino do Glauco, mas ainda assim se trata de uma afirmação hipotética, não comprovada.”
“Se alguém já tem surtos psicóticos subjacentes, pode eclodir, mas pode ter sido pelo consumo de qualquer droga ilícita, como a cocaína”, pondera o psiquiatra Wilson Gonzaga. Para ele, o que tem ocorrido, em alguns casos, são afirmações fora do contexto e um destaque que leva a uma leitura negativa do uso religioso da bebida amazônica. “Não podemos responsabilizar o chá pelo ocorrido.”
De acordo com Xavier, é possível comprovar, com base em pesquisas recentes, que um número expressivo de dependentes químicos abandonou o vício após ingressarem em grupos que utilizam a bebida psicoativa em seus rituais. Caso, inclusive, do próprio cartunista Glauco. Mas daí a afirmar cientificamente que a ayahuasca pode curar a dependência química há um longo caminho.
Pesquisas avançam, porém, neste sentido. A mais recente foi coordenada pelo próprio Xavier no Departamento de Psiquiatria da Unifesp. O estudo, feito com ratos, buscou investigar o potencial terapêutico da bebida psicoativa e o resultado revoluciona o que se sabia até então. “Verificamos que o chá age em regiões do cérebro onde o vício também atua”, explica o médico.
Os ataques ao culto do Santo Daime e ao uso religioso da ayahuasca também são movidos por grupos que se opõem à recente regulamentação aprovada em nível federal. “Decisão embasada entre outros fatores, no direito à expressão religiosa”, defende Xavier. “Não se pode negar as religiões”, acrescenta o antropólogo Edward MacRae, representante do Ministério da Cultura no Conad e fundador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip). O antropólogo defende o diálogo. Caminho tomado pela União e que desembocou na atual regulamentação da ayahuasca.
Com o objetivo de realizar uma revisão dos usos da bebida psicoativa ayahuasca, a Secretaria Nacional para Políticas sobre Drogas organizou um grupo multidisciplinar, coordenado pelo Conad, que reuniu cientistas e líderes religiosos durante seis meses. O objetivo era chegar a um documento oficial que norteasse a utilização da bebida. Mas conciliar as interpretações e entendimentos díspares como o religioso e o científico, não foi tarefa simples. “Para os religiosos, a ayahuasca é uma hóstia sagrada que representa Deus”, diz Xavier. O antagonismo gerou uma tremenda saia justa, observa o psiquiatra. “Como questionar se ‘Deus’ estaria prejudicando a saúde?”
Entretanto, o diálogo com os grupos religiosos não fez o trabalho perder seu caráter científico, garante o psiquiatra. Em linhas gerais, o estudo tornou-se uma regulamentação, aprovada pelo Senad e publicada no Diário Oficial da União, em janeiro deste ano, que garante o direito do uso da ayahuasca em contexto religioso. Xavier adverte: “É preciso novas pesquisas”. A comercialização da bebida foi outro ponto discutido na comissão e que, segundo ele, merece atenção redobrada, para evitar abusos. “Neste caso, a recomendação foi para que cada grupo produzisse a bebida para coibir o comércio”, observa.
As religiões ayahuasqueiras – como são conhecidos os cultos que utilizam a bebida – começaram a surgir no Brasil em 1930, segundo a antropóloga Sandra Goulart, doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, professora da Faculdade Cásper Líbero e coautora do livro Cultu-ra e Drogas: Novas perspectivas. O primeiro grupo foi o Alto Santo, fundado em Rio Branco, no Acre, pelo maranhense Raimundo Irineu Serra. Na mesma cidade, mais de uma década depois, em 1945, surge a Barquinha, fundada pelo também maranhense Daniel Pereira de Mattos.
Em 1961 nasce a União do Vegetal (UDV), desta vez em Porto Velho, Rondônia, criada pelo baiano José Gabriel da Costa, conhecido como Mestre Gabriel. Segundo Goulart, pouco tempo depois começa um processo de ruptura dentro dessas religiõe-s que fez surgir novos grupos. O principal deles foi idealizado por Sebastião Mota de Melo, fundador do Cefluris, também conhecido como Santo Daime, do qual o cartunista Glauco fazia parte. “A UDV e o Santo Daime são os principais grupos em termos de adeptos e de expansão, no Brasil e no exterior”, observa a antropóloga.
O crescimento acelerado a partir de 1980 faz esses grupos invadirem as grandes metrópoles. O uso da ayahuasca deixa definitivamente de ser um culto amazônico para se tornar um fenômeno urbano, atingindo um público bem diferente dos seringueiros. Artistas, intelectuais, médicos, advogados aderem em massa à emergente religião da floresta. “É neste momento que a ayahuasca começa a ganhar mais visibilidade e a ser inserida no debate sobre drogas nas sociedades contemporâneas”, afirma a antropóloga.
Fonte: Revista Carta Capital
http://cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=6&i=6368
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